domingo, 13 de dezembro de 2015

Destruição (Poema do Cansaço) [1]



já foi amor
o paraíso
compartilhável

já foi verdade
um pouco todas
dentre as possíveis

já foi a escrita
o movimento
a mão e a mente

ainda lembro
que sim já foi
agora ficou só o cansaço.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Releva (1.1)



O céu e a areia têm a mesma cor e quase exatamente o mesmo tom de azul esbranquiçado ou talvez cinza, o que parece impróprio pra estação se a palidez de névoa traz à mente a ideia de cansaço e de fraqueza como se até o sol fosse um funcionário desbotado e esgotado do verão, mas condiz totalmente à nostalgia da presença do avô já falecido e em menor grau da própria infância antiga. A passagem do tempo e essa paisagem são fantasmas que envolvem as memórias de modo que elas pairem esquisitas, substâncias alteradas, deslocadas em sua nova forma de ectoplasma. Não, a passagem do tempo é real e como se filtrasse o relevante — provisões estocadas pela mente — por critérios às vezes tão cruéis, deixa escorrer detalhes que então mancham as retinas e dão cores exóticas a lembranças parciais ou esquecidas.
Talvez o estranho seja essa filtragem. Lembro do meu avô, mas do que lembro especificamente? De um foguete que estourou muito perto da cabeça, da prótese dentária removível, do braço envolto em gesso após um tombo causado pela casca de um pistache que alguém deixou cair num chão de ardósia, do círculo em relevo sob a pele, marca de um coração pulando passos. Meus olhos de criança se espantaram com a mudança dos corpos pelo tempo e com a fragilidade da velhice ou o adulto que esculpe essas lembranças e transforma num ícone uma vida a partir de outros dados, de ouvir casos, pra preencher espaço em que só resta talvez um cheiro, um modo de sentar ou palavras cruzadas de um jornal.
O que separa os dois é muito pouco: o céu e a areia têm a mesma cor porque um lençol tecido pelo mar vem lá de um outro azul de bordas brancas, e vai quase até dois blocos cinzentos ou meio arroxeados que são prédios à beira-mar e à margem da foto. O céu e a areia têm a mesma cor da sensação de ver esse menino que parece gostar do vento forte, vento que sopra desde a infância, era das grandes aflições por coisas poucas, prenúncio de um declínio inevitável.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Releva (2.1)

Por incontáveis vezes esse rosto no espelho olhou meus olhos como um eco do mesmo som de nojo que o dia faz quando me levanta sempre cedo demais e viu que há sempre alguém disposto a abandonar o sono certo e a cama quente por qualquer coisa além da porta. Por incontáveis vezes esse espelho, retrato sem ciúme do que guarda, pôde pegar e soltar minha imagem sem desejo de posse e sem controle, sem sofrer pelo alcance limitado, sem pretensões de eterno ou de memória, sem se rebelar contra e o tempo e o espaço. Aceitar a mudança e o esquecimento talvez seja a lição de todo espelho, que não somente dá respostas óbvias, revelações daquilo que se busca: sugere reflexões a cada vista, e sem a luz do instante não diz nada. Sua sabedoria é se adaptar.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

O Mundo

O tempo para


Pensa nos amantes,
nas mortes vividas,
no que veio, vem
e virá dos dias.

Tudo sempre muda.

Pensa na agonia
de estar sempre abaixo,
no faltar saídas,
na fome de antes.

Nada nunca muda.

Pensa no que fica
da memória antiga,
nas meias mudanças,
nas marcas mais fortes.

Nada muda tudo.

O tempo passa

e pouco a pouco
toda mentira

se faz verdade.

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Imperdoável

Não, eu sou o demônio
minando meu campo.
Todo movimento
seu agora ativa
uma resposta perfeita.

Há um demônio em mim
desprezando as dicas
do bom e do sábio.
Todo movimento
meu é parte da estratégia.

O demônio espera
(com a calma do inferno,
com doces ciladas,
garras agradáveis)
a vontade do deslize,

Sou um demônio e espero
(como a aranha observa
sobre um mar de teias
presas desejadas)
o aceite da pele ao toque.

Será imperdoável
coração tão grande
e olhos tão velozes?
Coração macio

e instáveis olhos precisos?

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A Estrada

A estrada é o demônio
entre nossos dias.

Além do cansaço
do meu corpo fraco,
além da falência
de uma mente magra,
além dos esforços,
preço pago a prazo,
do que me é cobrado.
Muito além dos passos,

o espaço se estende.
A estrada é o demônio.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Insolúvel (canção para karaokê)

Dessa alegria expansiva
e coletiva conheço
somente a imagem e o som,

talvez o cheiro de álcool,
de alguns cigarros diversos
e de mais perto suor,

como se minha presença
não fosse tão diferente
de só lembranças depois.

Material insolúvel
firme no fundo de um copo
(meio vazio) de amor.

domingo, 22 de março de 2015

Impermeável

Rosto sólido, mão fria.

Essa mente quase cega,
esses dedos quase mudos,
esse peito impermeável.

Coração na economia.

E se a luz me mostra mau,
e se perto a fala aperta,
e se — Não, melhor imóvel.

Poço árido e sabia.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Minério

Montanhas desfeitas cedem
e as veias de ferro levam
embora, cortando a seca
paisagem familiar.

— Minério, carne da pedra
arrombada à bomba, deixo
também eu a quem me acolhe
só a cratera, só a poeira.