domingo, 15 de dezembro de 2013

O Peso do Gafanhoto

Ai daquele que diz ao pau: Acorda!
(Habacuque 2:19)


Eu não sou assim tão velho,
talvez só bebi um pouco
além do recomendado.
Não tenho receio ou medo,
também nunca faltou jeito.
Agradeço a paciência,
o que daqui não parece
uma coisa assim tão ruim:
se a alma é mole e inatenta,
a língua esperta não cansa
(ou, lógica do mercado,
mesmo cansada trabalha)
enquanto a mão vai tentando
a ressurreição da carne
e por acaso me lembro
lá do capítulo doze,
versículo cinco, isso
no Eclesiástes. Concentra,
não no pensamento (todo
o contexto é diferente),
mas na imagem, um problema
ancestral da vida humana:
será peso o gafanhoto
farto e não mais o desejo
acordará (a alcaparra
– a bíblica catuaba –
não mais fará seu efeito)
e eu vou pensando na imagem:
será o gafanhoto o próprio
pau, satisfeito ao contrário
do dono (ou base) do pau,
ou, mais além, imagina
a cena do gafanhoto
que come e come uma folha
e, conforme se empanturra,
vai pesando sobre a haste
ou talo onde se apoiava
e o talo que cede ao peso
(e se dobra e pende ao chão)
seria ele o pau mole.
Isso não tá ajudando.
Aliás, pensando bem,
acho que a segunda forma
não faz é nenhum sentido.

— Valeu, eu já tô de boa.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Entre Rios

Os que viram os primeiros
brotos despontar das trilhas
enfileiradas, rasgadas
à força na superfície,
acreditavam que haviam
sido criados pra isso.

O talo que sulca a argila
das tabuletas bem mais
rápido que o boi abrindo
o chão dos campos cevado;

Os que viram os primeiros
braços do Eufrates buscarem
o rumo das terras secas,
dobrado por mãos humanas,
sempre acreditariam
na potência do dilúvio.

o incômodo som urbano;
as muralhas construídas
e derrubadas no braço.
Nome pó de reis e deuses.

O deserto é um monumento
à repetição do em vão,
ao desperdício da força,
ao desafio esgotante
da grandeza e do fracasso.

sábado, 5 de outubro de 2013

Noites Seguintes

Na noite seguinte Shahrazad disse:
O alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Meu irmão disse:

Diz. Mas já muito antes disso,
quando contou vinte e seis
manhãs dividindo casos
e adiando a morte, soube
ou talvez sentiu ou mesmo
só resolveu apostar:
da próxima vez recebo
a aurora com o fim da história,
sem garantir com o suspense
meu passe pra mais um dia,
só com a promessa de ainda
servir outra narrativa.
As sobremesas da cama.
Seria esse o momento
de manter prioridades,
de relembrar a mulher
infiel, a cena, a fúria,
o estrago da confiança,
a violação da posse,
o voto de dedicar-se
não mais que uma vez a cada
nova noiva e então matá-la,
de ouvir o rancor, há dias
calado nas noites de contos.
Diz. Pois na noite seguinte,
quando outra história começa,
soube – dessa vez por certo –
que domina seu ouvinte,
que todo o reino está salvo
do rei das bodas de sangue,
que não conhecia a vida,
só sua imagem de orgulho,
só fantasias de macho,
ficções de propriedade.
Mas depois de tanto ouvir
suas histórias, mulher,
se a vida é enfrentar a falta
de controle e de recursos,
saber sofrer é viver
bem, agora eu reconheço.

Durmo tranquilo ao seu lado
sonos de arrependimentos

sob a coberta dos crimes.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Rede Social

Primeira rede do dia
vazia volta pra areia,
como as barrigas e bocas
que em casa esperam hoje
o que não tiveram ontem.
Sobrou nada na panela.

A segunda rede arrasta
com músculos tensos todo
peso da necessidade.
Seu lote emerge na urgência:
plásticos, restos diversos,
sei lá que desgraça é essa.

Na terceira vez a rede
vem rasgada. Paciência
remenda os nós dos farrapos
e vai, nova tentativa,
(ô, mar que exige improviso!)
sem aquela esperança:

uma quarta vez cansada
se lança e se assenta no fundo.
Puxa devagar e sente
a resistência das fibras
(só peço que não mais lixo),
a força, tá quase, vamo

Já quase não é um rosto.
Isso nem é cor de gente.
Será qual foi seu desastre?
Descansa na praia agora
pelo menos. Que tristeza
talvez também por você.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Trabalhos e Dias

Sob incômodo sono
é o fim da manhã.
Pela repetição
consome-se a tarde.
Uma distração simples
e a noite acabou.

Madrugada mal dormida.

Que insistência do sol
de se levantar
sobre todas as causas
pra me lembrar cedo
com sorriso cruel
do dia e das coisas.

Automática manhã.

Passa mei-dia e mole
vêm tarefas mornas
que lambem corpos lentos
tão depois do almoço.
Ê, lua que não vem,
traz nosso sossego.

Tardes deserto do tempo.

Mas quando sobra a noite
não permita data
que passe sem prazer.


Dia curto, noite mais.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Vôo pelo Centro-Oeste

Nesse mar,
  planície de espuma
  azul e dourada
  ondulando suave
  pela dupla camada de vidro.
  Macrovilosidades.

Nesse mar,
  abre-se um lago
  em que se vê
  as profundezas azuis
  da superfície da terra.

Nesse lago,
  rios de ouro,
  veios de sol
  submerso.

Nesses rios
  simples e decisivos. Como são

  as paisagens.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Grito

O povo
unido

jamais
será
bem-vindo.

domingo, 9 de junho de 2013

Respostas Simples

É como se esperasse alguém
dizer isso não é conhecimento.
É como se esperasse alguém
dizer isso não foi tudo, tem mais,
bem mais, cê só não percebeu.

É como se esperasse alguém
rasgar as conclusões na sua cara
(mas com um sorriso) e dizer olha
como tudo é mais leve e mais complexo,
bem mais, como não percebeu.

— Procura o livro o filme o disco
o discurso disposto à dúvida,
pois cada verdade se anula
e assim todas as outras. Pessoal,
como sugestão discutível.

“Tem mais? Sempre tem que ter mais.”
Quem vem confirmar ou dizer que não?
(Sem ódio, sem ressentimento).
— E se vier, por que não duvidar?

Sem mais. Ele já percebeu?

sexta-feira, 31 de maio de 2013

sábado, 4 de maio de 2013

Galáxia

Em cada tempo,
cada lugar,
atos iguais
se repetem. Sempre.

Quando me ofende a extensão
da noite ou do apartamento,
penso na cidade grossa,
na terra hostil, no universo,
nas ilhas de gás e pedra.

Quanto dura o brilho morto
que emana de um sol já cego?
Quanto dura a translação?
Do corpo à esmo, que vago,
lua de elipse sem foco.

Por mares de breu invade
a autoridade do tempo.

Se ao menos você estivesse
ainda por perto, tudo
(não, melhor é ser sincero,
eu me conheço, seria
qualquer outra falta minha).

Enquanto o todo se expande
pelos limites do espaço,
inadequado na ordem
incoerente no cosmos,
em tão patética pompa,

herói galáctico, guardo o
vácuo de estrelas extintas.


Há ainda cem bilhões de pontos.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Pedidos (Perdidos)

Nossos diários
itinerários.
Nossos horários.
(Meus honorários.)

Isso ainda é uma busca?
Vida curta demais pra não ser brusca,
desvia meu caminho
pra que a certeza não construa ninho.

Ainda é uma aventura?
Vida longa demais para ser pura,
varia meus problemas,
eu quero provar todos os seus temas.

Bagunça meus passos,
entorta meus traços,
me muda de ideia.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Adentro os Domínios


Pelo quintal
a organização das telhas,
o esqueleto da cobertura,
os carros ainda sem peças.

Pela varanda
cascas de laranja em espiral,
cinzas na caneca de metal,
um maço vazio, uma ponta,
um recibo ou extrato da conta,
a neta no fundo de tela
do celular que agora toca.

Pela sala
a roupa sobre o sofá
separada pra trabalhar.

Pelo quarto
o lençol jogado.

No banheiro
a caixa esvazia
a chuva da casa,
o choro velório,
no velho no chão.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Movimentos Mínimos


O que previne o pulo

não é o parapeito, nem a pressão
da intimação do solo, nem a vista
da pista de janelas que se alonga
à rua, precário espelho do céu.

O que permite a pausa

Não é rejeição moral, nem apego
à vida, nem o apelo (puxão) da mão
imaterial da memória, mina
de rostos, cenas e sensações soltas.

O que pondera o impulso

não é a crença em nenhum futuro bom,
não é aposta em nenhum projeto a prazo,
menos ainda a possibilidade
de qualquer sucesso. Ou de te ver.

O que me prende ao piso

e impede até a simples
inclinação do corpo
é uma imensa vontade
de não fazer nem isso.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

[Porro]

Imagens de arquivo,
ilustrações de manual,               
jornalismo de entretenimento,
criptografia nas colunas de loteria esportiva,
análises (opiniões), previsões (desejos), apostas (crenças).
A humanidade.

Esforço, repetição e cansaço,
movimentações inesperadas,
golpes encaixados, esquivas,
esperas e potência.
A condição humana.

E cada pessoa é um tapa na cara.